A 2ª Edição da Expo-Arte Contemporânea realizou-se entre 14 de Setembro 29 de Outubro de 2006 no Museu Nacional de Arte em Maputo.
Para que se possa encontrar o fio da história do MUVART, compreendendo o contexto e o propósito de cada edição da Expo-Arte recuperamos os textos de Jorge Dias, Julieta Massimbe e José Pimentel Teixeira, que constam do catálogo.
Depois da “primeira pedra”...”mais um passo”
Jorge Dias (Comissário da Exposição)
Berry Bickle
Até ao final dos anos 80 a estrutura da arte que se formou em Moçambique, apoiou e incentivou um grande número de artistas que produziram a pintura de cavalete, escultura de talhe, o desenho, a gravura e a fotografia. Estas produções pautaram por narrativas nacionalistas, sociais, culturais e todas as preocupações que de certa forma estavam presas à questão da forma. A crítica e a censura da arte vieram antecipar a produção, adoptando uma estratégia de repressão e direcionismo, a qual acabou por ditar uma determinada estética e conceito de arte em Moçambique.
O sistema implementado nas artes plásticas foi partilhado por grande parte dos artistas que em muitas das vezes eram incapazes de questionar as imposições que lhes eram colocadas. Este cenário foi responsável, com decorrer do tempo, por construir uma estética muito particular com características próprias. É uma produção que soube cruzar aspectos da tradição, da antropologia, da sociologia, do secretismo religioso e das ideologias partidárias em prol de uma estética e linguagem específicas, as quais classificamos hoje de escola da pintura e da escultura Moçambicana. Esta produção forneceu durante algum tempo orientação estética e ideológica para novos artistas.
Os artistas que buscavam neste período outros caminhos, dificilmente encontravam visibilidade e reconhecimento por parte do circuito. É na década de 90 que o cenário começa a dar sinais de mudanças. Em 1994 surge a Cooperativa de Arte Feliz como um grupo de artistas que tinha uma intenção de trazer uma estrutura diferente de intervir no circuito e propor uma produção que confronta com as estéticas aceites. Ficam-se em torno da experimentação da cor, da forma, do gestualismo, das preocupações pessoais e das narrativas líricas.
Mas é nos últimos 4 anos que mudanças profundas nas artes visuais a nível de gestão, teorização e produção começam a acontecer e a trazer resultados a nível de arte contemporânea, uma profunda e sincera reflexão em torno da questão da arte. O Movimento de Arte Contemporânea de Moçambique (MUVART) implementa uma forma diferente de gerir e fazer arte em Moçambique. Foram desenhadas e implantadas novas estratégias de integração e de organização de exposições de forma a responder às diferentes práticas artísticas existentes, dando espaço numa primeira fase a abordagens diferenciadas das tradicionais pinturas e esculturas. As produções que o MUVART propõe devem responder a um pensamento único na forma de produzir e agir sobre a nova realidade.
Como uma das estratégias para a implementação do projecto MUVART, está a criação desta exposição que se pretende realizar de 2 em 2 anos. A primeira edição da Expo Arte Contemporânea Moçambique 2004, abriu espaço para artistas novos que tinham um trabalho que reflectia uma procura em torno de novas linguagens. Teve um carácter essencialmente didáctico. Para além de Moçambicanos, contou com a participação do grupo percursos do Rio de Janeiro – Brasil, e com artistas convidados da África do Sul, Espanha, França, Portugal, somando uma totalidade de 37 artistas de 7 países.
Nesta edição foram convidados alguns artistas que têm um trabalho diferenciado e que mostraram um certo crescimento e maturidade. Participam 30 artistas de 9 países nomeadamente: Moçambique, Guiné-Bissau, Zimbabué, Argentina, Brasil, E.U.A., Portugal, Espanha e França. Este ano contamos com a participação especial do Ídasse, com um trabalho virado para o erotismo.Os artistas do Rio de Janeiro, Brasil - Atellier 21, constituído por Isa Bandeira e Raquel Trindade se juntam aos artistas Adilson Barbosa, Suzi Coralli, Rafael Vicente.De Portugal vieram dois grupos; o SENHORIO do Porto com Carlos Pinheiro, Nuno Sousa, Marta Bernardes e Mónica Faria. Este grupo foi criado e motivado pela necessidade de encontrar um espaço de trabalho e de discussão para além da escola e do circuito comercial. A actividade do Senhorio tem-se manifestado principalmente na publicação de Fanzines. O segundo grupo é o Laboratório de Actividades Criativas (LAC) de Lagos, Algarve, representados por Jorge Rocha e Susana de Medeiros. O grupo tem funcionado numa cadeia desactivada e têm desenvolvido actividades como dança, musica, artes plásticas, vídeo e funciona com uma biblioteca. Está virado essencialmente para artistas que vivem e trabalham em Lagos.
Há uma apresentação maior de trabalhos de vídeo-arte, vídeo-instalação e vídeo-performance. Linguagens que são de certa forma experimentais entre nós. De Moçambique o destaque vai para o Gemuce porque vem desde 2003 desenvolvendo o seu trabalho nesta direcção, criando vídeo-instalações, cruzando a escultura, pintura e objectos com a tecnologia do vídeo.
A fotografia reaparece em Moçambique com “caminhos novos” buscando acima de tudo uma imagem optimista, descontraída e alegre. Seja dentro do fotojornalismo, foto-documentário ou fotografia antropológica. É uma das categorias das artes que mais cresce em Moçambique. Mauro Pinto, Alexandre Santos, Rui Assubuji e Tomás Cumbana, são fotógrafos que se situam entre o chamado fotojornalismo e a fotografia artística.
É de realçar que um novo grupo de artistas Moçambicanos nomeadamente: David Mbonzo, Rafael Bordalo e Tembo Dança, juntamente com os mais experientes Anésia Manjate e Mudaulane, são convidados para esta exposição porque tem vindo a desenvolver trabalhos que trazem um questionamento pertinente no debate da arte.
A escolha destes artistas representa e reflecte uma mudança de intervenção no espaço das artes visuais em Moçambique, que vem conhecendo alterações profundas a vários níveis, o que é fértil para novas e continuadas mudanças. Com a realização desta exposição acreditamos que o MUVART dá MAIS UM PASSO importante na implementação da arte contemporânea em Moçambique.
Expo Arte Contemporânea Moçambique 06
Julieta Massimbe (Directora do Museu Nacional de Arte)
Dois anos volvidos, desde a realização, em 2004, da singular e bastante concorrida exibição, apostamos agora na 2ª edição da Expo Arte Contemporânea Moçambique.
Hoje, a visão e sentido dum evento desta natureza e craveira encontra espaço e compreensão, junto aos apreciadores da arte.
Pretende-se desenhar novos caminhos e direcções que possam responder e transmitir as novas linguagens e abordagens nesta área. É um desafio.
Na verdade muito se tem desenvolvido, e esforço interno tem sido capitalizado para a valorização deste modo de ver e interpretar a arte. Regista-se um salto qualitativo que importa encorajar nesta direcção.
A presença de artistas internacionais empresta uma vez mais um ambiente de procura constante e de acompanhamento do que vem ocorrendo nas diferentes latitudes.
Existirá um conhecimento estruturado sobre a arte contemporânea?
Esta mostra permite-nos perceber e localizar os avanços e perspectivas sobre esta matéria. Não haverá por enquanto respostas definitivas ou receitas previamente encomendadas para nos colocar ao corrente desta realidade, mas esta exibição integra-se no esforço de identificar e divulgar as recentes produções e actividades desenvolvidas em Moçambique, especialmente por artistas mais novos (últimos 10 anos).
Sobressai o vídeo-instalação e o vídeo-performance e a presença cada vez maior da fotografia como arte. De salientar também as novas instalações com novos materiais que reflectem uma preocupação em dar espaço a essas abordagens.
Assim, é no quotidiano, no ambiente e trabalho artístico que encontramos a resposta a esta e outras questões através da criação artística.
Deste modo, toda a criatividade revelada nos trabalhos expostos, mais do que uma dimensão física e material evoca-nos uma capacidade de intelecto e as propostas de solução para vários aspectos e categorias do conhecimento.
Maputo, Agosto de 2006
Conversar o Muvart - Lembrando o Bento Mukeswane
José Pimentel Teixeira (DAA-UEM/IPAD)
1. Agregado à "Expo-Arte Contemporânea Moçambique 06" surge este propósito de abordar, de modo breve, o papel do Muvart no contexto das artes plásticas moçambicanas. Apenas "Conversar o Muvart" pois nada me induz a historiar o seu percurso, desde o aparecimento com o Manifesto de 2002 e cruzando as suas posteriores realizações. Por um lado porque os seus caminhos, raízes e até tessituras, têm sido competente e exaustivamente acompanhados e grafados (Alda Costa, 2004, 2006). Por um outro lado dado que alguns dos passos percorridos estiveram aí e este outro está, agora, aqui. Todos bem visíveis, e explicitando-se - e é esse o primeiro facto, exemplar, que se pode assinalar sobre o movimento: entendo que é a consistência intelectual do seu projecto que imprime à actividade do Muvart esta dinâmica constante, multifacetada e até perene.
Com efeito, este seu quase quinquénio de actividade tem demonstrado o quão potenciadora é a articulação entre uma conceptualização sistematizada, o projecto artístico aqui em causa, e a capacidade organizadora. Ocorre-me pois, até instrumentalmente, realçar esta característica. Não se trata, como julgo óbvio, de apelar a uma ética "institucional" da produção artística, constrangedora do irredentismo individualista na arte - ainda que este próprio surja como produto histórico, contextualizável, de uma formulação do artístico (e o qual julgo ainda não ter sido afrontado neste calcorrear do Muvart). Trata-se apenas de realçar as dinâmicas positivas permitidas pela institucionalização dos processos de indução artística, como surge neste caso.
2. Associando desde o seu início artistas nacionais de várias proveniências e diversos trajectos, e entendendo como prioritária a necessidade de os cruzar com os parceiros exógenos, o Muvart surgiu desde o seu início com o colectivo propósito da ruptura. Não no sentido de "criar", "originar", a arte contemporânea em Moçambique, prática essa que alguns outros artistas podem reclamar enquanto projecto individual, exclusivo ou não, perseguido anteriormente - e casos paradigmáticos disso serão, desde a década passada, os trajectos e as posturas de artistas de gerações diferenciadas como o são Titos Mabota e Fernando Rosas. O que se tem vindo a assistir com o Muvart é à (re)construção em Moçambique de um campo de actuação artística, de uma legitimação de novas formas de expressão artística, sua indução e propagação.
Deste modo realçar-lhe a conceptualização não é negá-la a tantos outros projectos artísticos seus vizinhos e contemporâneos, apenas sublinhar-lhe o específico carácter problematizador. A ruptura do Muvart surge assim, a um primeiro nível, com duas dimensões: na produção artística, na pedagogia artística.
Assinalável neste particular aspecto é a recuperação das curadorias projectivas e prospectivas. Se tal prática não é aqui original ela destoa face a alguma tendência para pura recensão e/ou congregação de obras a apresentar e a divulgar que se tinha instalado enquanto modo desta actividade. Julgo necessário salientar esta dimensão pois considero-a como sinal de um radical progresso nas artes moçambicanas, algo sociologicamente ligado aos processos de formação académica (por enquanto no estrangeiro) em artee gestão de arte. E que (re)abre novas expectativas para a extroversão da arte em Moçambique.
3. Porquê tanta ênfase na dimensão intelectual deste processo? Exactamente por considerar o tal propósito de ruptura que o Muvart carregou consigo. Num primeiro vector implicando o desnaturalizar da prática artística. Induzir, direccionar, é um óbvio confronto com odiscurso do "artista nato", individual, hierarquizável em graus de "genialidade" sob índices de "talento" e "inspiração", estas quais categorias essenciais, imanentes, a-históricas, vistas como motores da produção artística. Entenda-se ainda este discurso do artista natural como concepção siamesa da que encontra em determinados "povos" (antes "tribos", hoje "etnias"), tendências colectivas, um "substrato cultural", para a produção artística (neste caso "folclórica", no velho sentido desta palavra) – e que hoje surge aqui crismado nos discursos identitários nacionais em torno da escultura maconde e da música chope. A sistematização conceptual que a emergência colectiva da arte contemporânea em Moçambique implica esta primeira ruptura, a da desnaturalização do produtor artístico.
4. Explícita tem sido, à vista desarmada, e por isso nela não me alongo, uma segunda desnaturalização: a das práticas artísticas. A vontade do exercício plural e/ou multidisciplinar de formas já consagradas alhures (happenings, colagens, permeabilidade à palavra escrita e à imagem em movimento, performances, instalações, etc.), a introdução de uma alargada parafernália de materiais. Tudo isso confrontando o monopólio das modalidades canónicas, escultura, desenho, pintura. Vistas pelo vulgo, e não só, como "naturais" pois tradicionais, e assim correctas, legítimas. Deste modo a abertura aqui de novos rumos na produção artística confronta a ideia geral do que é arte, que formas pode assumir, e do que é a tradição, permitindo interrogar se esta não será, pelo contrário, ela própria uma inovação, lembrar que modos da produção e recepção da pintura, desenho e escultura (a tal tradição artística) não foram também importações relativamente recentes no país.
5. Finalmente, refutar o espartilho das modalidades "tradicionais", negar-lhes a obrigatoriedade e a primazia, implica também uma afirmação da possibilidade de novas temáticas e olhares sobre a realidade, a exigência da construção da realidade através da arte, e não tanto seu retrato ou denúncia: um plurimorfismo artístico que exige uma não linearidade nas leituras. Tanto no que se produz, como nas formas de recepção – exigindo novas formas de recepção da arte, da sua classificação, de diálogo com o público, até polémico (algo que se me afigura como ainda incipiente). Estamos diante de uma nova desnaturalização, a da categoria "arte" e a das categorias de "artista" (o agente) e o "público" (o receptor). Se o diálogo é entendido como discussão entre estes então tudo se complexifica, nada é natural, essencial. E mais uma vez se questiona as categorias, aparentemente naturais, de arte, artista e público. E questionam-se como, também elas, recentes importações, e não tradicionais (como se legítimas) categorias.
6. Uma útima problematização neste excurso que se quis curto. Associada a todas estas questões surge uma outra visão, também ela não absolutamente original, mas dirimida com particular veemência em Moçambique pelo Muvart: a recusa em aceitar os estereótipos sobre a prática do artista é também a recusa em aceitar os estereótipos sobre as componentes intrísecas à arte em África. Refuta-se uma visão exótica do artista africano, assim condenado a técnicas, temáticas e mensagens particulares, como reprodutor, implícito ou explícito, de uma identidade colectiva (nacional, pan-africana). Entenda-se, mais uma desnaturalização está em curso. Caindo tons e formas ditos "africanos", caindo temáticas ditas "obrigatórias" – uma fixação exótica cuja paleta pós-colonial recobre as categorizações coloniais: não é a Arte para a Paz e a Arte contra a Sida o renascer de uma visão da África "doentia" e "por pacificar", não tão subreptícia assim?
7. Estas "tarefas" não implicam a recusa radical das canónicas expressões artísticas (como o exemplifica a suave desconstrução do belo feita por Gemuce em "Movimentos Estranhos", na recente colectiva "Recados Para Casa") nem a recusa da "tradição", no sentido da utilização interrogativa das componentes culturais dos artistas (como exemplificou Marcos Bonifácio em "Culimando Ideias" na Expo-Arte Contemporânea 04). Estas "tarefas" significam algo bem mais profundo, o entendimento da não essencialidade de qualquer "tradição", artística ou não, da constante invenção dessas tradições (Hobsbawn, 1983; Ranger, 1983). E de que essas tradições inventadas o são no decurso da agência dos indivíduos, da porosidade da interacção das sociedades. Em nada, bem pelo contrário, minorando legitimidades. Pois o "impuro" reclama-se legítimo, o "mesclado" reclama-se tradicional. É esse o cosmopolitismo veículado pelo Muvart. Esse sim afirmado essencial, identitário. Recuperando a sabedoria obscurecida por anteriores relações de poder que disciplinaram os entendimentos em tentativas de purificações não-questionadoras. Nesse sentido podemos ver aqui um projecto artístico que é também um projecto cognitivo. E político, discutindo identidades pela arte, sabendo-a um bazar de sentido. Esperando clientes para os regatearem.
Bibliografia
Costa, Alda (2004), "Txovando a Arte Contemporânea", Expo Arte Contemporânea Moçambique 04, Maputo, Muvart, pp. 4-8
Costa, Alda (2006), "À Procura de Outros Olhares", Réplica e Rebeldia. Artistas de Angola, Brasil, Cabo Verde e Moçambique, Lisboa, Instituto Camões, pp. 39-51
Hobsbawn, Eric (1983) "Introduction: inventing traditions", in Hobsbawn, Eric & Ranger, Terence (eds.), The Invention of Tradition, Cambridge, University Press
Ranger, Terence (1983), "The invention of tradition in colonial Africa", in Hobsbawn, Eric & Ranger, Terence (eds.), The Invention of Tradition, Cambridge, University Press
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